segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O QUE OS OLHOS NÃO VÊEM, A BARRIGA NÃO SENTE


Ronaldo era um menino alegre e arteiro, estava sempre correndo aqui e ali, sem camisa, com suas bermudas quase sempre rasgadas e chinelos amarelos. Morava em uma chácara com os pais, num bom terreno em Santo Antônio da Patrulha. Era uma casa simples, toda branca, janelas pintadas de cinza e apenas três cômodos.  Gostava muito do cheiro do campo, do carrinho que costumava passear com seu pai - onde quase não cabia mais - em dias de sol. Nos dias que cansava de andar no gramado perto das laranjeiras, gostava de correr numa trilha de pedras que havia construído com muito esforço. Talvez por isso fosse tão magro, estava sempre procurando algo para fazer e esquecia-se de voltar no horário das refeições.
Seu pai, Dionízio, tinha problema nas pernas e por isso achava ótimo que seu filho aproveitasse aquilo que ele não tinha mais condições de fazer. As pernas tortas e o problema na coluna o faziam mancar. Após alguns anos correndo atrás de mulheres comprometidas acabou levando uma surra, de um dos maridos traídos, deixando seu estado de mal a pior.  Em casa, seu filho e a mulher Flavialine conheciam outra história. Uma história triste, mas digna. Dizia o Dionízio, para aqueles que perguntavam que seu problema originou-se de uma pescaria onde foi puxado para dentro do riacho e a queda lhe causou essa maré de azar. Pobre homem! – Exclamava Flavialine todas as vezes que escutava o marido a contar a mesma história triste, sem notar que o pior cego é aquele que não quer ver. Ela, mãe de primeira viagem e super protetora, geralmente preocupava-se além da conta com as saídas de Ronaldo, afinal poderia cair, ser picado por algum animal peçonhento, perder-se... E, além disso, nunca se alimentava direito. Ela sempre dizia: Meu coração, comer é o melhor para poder crescer! Seu menino de ouro, porém, nunca dava atenção a sua boa mãe e comia apenas migalhas ao voltar para casa.
Certo dia algo terrível aconteceu. Ronaldo estava desatento, pensativo e pegou a barca para atravessar o riacho. O mesmo riacho em que supostamente seu pai havia quebrado algumas vértebras e feito a coluna cair. Pensava em como seria bom ter amigos, visitar lugares diferentes, estudar, ficar inteligente como os homens que compravam os produtos da Chácara. Foi então que, com o olhar parado e distante, não se deu conta que havia uma madeira solta na barquinha e bateu em umas pedras onde estava mais raso, resbalando e caindo com a face nesta madeira. Teve alguns machucados leves nos joelhos, mas seus olhos foram atingidos e ele não via mais nada. De longe, vinha sua mãe, voltando com uma cesta de batatas recém-colhidas. Ouviu os gritos desesperados de seu filho e pôs-se a correr desajeitada. Socorreu-o, chamou médico, limpou os ferimentos e estancou o sangue. Não podia fazer mais nada, só esperar pelo médico. Ele demorou e Ronaldo nunca mais viu o mundo, que era tão colorido.
Desde então, começou a fazer tudo o que a mãe mandava, passou a escutar muito bem, estudar Braile, dormir mais, comer mais como pedia sua mãe e escutar mais música. Sua vida era ouvir os elogios da mãe, ouvir o barulho das chinelas do pai, ouvir, ouvir e ouvir.
O que mais ouvia era que a comida é o melhor para poder crescer. Então comia. Comeu tanto que cresceu, mas como não enxergava sua forma achava que estava muito bem, sua mãe sempre o fazia pensar que era assim: lindo, forte e saudável. Agora mesmo é que não poderia ir para a escola, não tinha ideia de como seria falar com outra criança, mas já estava acostumado a escutar o rádio para se distrair. Uma vez o locutor disse que comemos com os olhos, então quem sabe comendo com as mãos ficaria saciado mais rápido? Passou a comer com as mãos, dispensando os talheres. Algo lhe dizia que não era normal comer tanto, mas sua mãe afirmava o contrário. Então continuou a comer. Nunca estava satisfeito, mas a barriga doía. Não entendia por quê. Antes, quando passava os dias correndo, a barriga também doía sem ter comida dentro. A vida foi passando e ele não via. Ele não via a comida. Não via a barriga que crescia. Sua mãe, porém via, mas preferia-o por perto, já que Dionízio sumira.

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