Eu tinha
apenas cinco anos. Morávamos em uma casa na Lapa. Meu pai era alcoólatra. Certa
vez, chegou em casa “naquele estado”, bateu em minha mãe, em mim e quebrou tudo
dentro de casa. Ela também batia nele. Esta cena se tornou comum. Eu não
entendia muita coisa, só sentia medo. Era estranho ver minha mãe sempre triste,
os vizinhos sempre preocupados e oferecendo ajuda. Era um clima de incertezas e
pânico. Cada vez que ele chegava bêbado, meu peito doía, mesmo com toda a
vontade de brincar que existe dentro de uma criança desta idade, vinha uma
imensa sensação de paralisia. Minha mãe não aguentou mais aquela situação,
mandou-o embora e pediu ajuda aos vizinhos. Ele foi, levando todos os nossos
móveis, com exceção da geladeira, fogão, um colchão, televisão, umas almofadas
e o rádio. Na outra semana, porém, estava eu sentado nas almofadas vendo
televisão e ele chegou. “Oi filho”, disse ele entrando. Assustado e
acompanhando seus passos eu respondi apenas “Oi”. Ele pegou o rádio, explicando
que era dele e precisava levá-lo. Quando minha mãe chegou do trabalho contei a
ela. Sentou-se no chão e chorou calada. Perguntei por que ela estava chorando.
Ela me disse que estava apenas lavando os olhos por dentro. Tivemos muitas
dificuldades financeiras e passamos fome por dois anos. Para ela sair para
trabalhar era necessário que eu esquentasse minha comida para almoçar, sozinho,
assim como ir para o colégio, sozinho, pegando dois ônibus. Eu tinha seis anos.
Minha adolescência foi conturbada, não queria
estudar nem pensar em trabalho. Só queria namorar, andar de skate, desenhar,
jogar bola e vídeo game. Quando fiz dezenove anos, percebi que era hora de
mudar, via minha mãe desesperada para nos sustentar, “ainda”, fazendo tudo para
que eu tivesse mais responsabilidade. Mas eu não sabia o que fazer e ficava
nervoso. Quando sentia aquele aperto no peito, pensava na única coisa que meu
pai me ensinou, num dia que estava sóbrio. Ele me disse: “Quando você ficar
nervoso ou com medo, respire fundo até acabar o ar do pulmão e solte
lentamente, que então passará”. Via as outras pessoas trabalhando normalmente,
e eu, naquele dilema. Se gostava de algo, ou não, nem sabia. Quando me olhava
no espelho sentia nojo daquela imagem: magricelo, barbudo, alto demais. Minhas
roupas eram todas velhas, de pessoas que não as queriam mais. Precisava de um
emprego pelo menos para comprar coisas que ela não podia me dar. Elaborei uma
lista de coisas que gostava. Eu gostava de desenho, música e de ler. Precisava
de um norte. Uma tia minha me disse que isso tudo era um hobby. Continuei
desenhando e ouvindo minhas músicas. Meus desenhos eram macabros, demoníacos e
monstruosos. Como alguém, além de mim, poderia gostar deles? Acho que a música
sempre me inspirou. Sem ela, eu não fazia nada, nem comia. Senti muita vontade
de comprar um violão e aprender a tocar. Minha família toda estava preocupada
comigo, minhas primas, tios e tias, avó e... arrumei um amigo, que também se
mostrava confuso com minhas escolhas, ou a falta delas. O cara se chamava
Érico, e eu, desculpe não ter me apresentado antes, me chamo Léo. Leonardo
Martins. Ficamos amigos um dia que ele se interessou por um papel amassado que
joguei no pátio dele. Era para ter ficado furioso, se fosse eu, ficaria.
De vez em
quando ele me pedia para fazer certos tipos de desenhos com foco em quadrinhos,
charge, etc. Tinha o apoio dele, então, finalmente estava decidido a buscar
trabalho como Desenhista. Eu não queria mais aceitar a ideia de que era apenas
um hobby. Eu sabia que tinha algum talento. Através do Érico conheci outras
pessoas da Lapa que quase toda a semana se encontrava nos ensaios da Banda.
Convidaram-me para tocar com eles diversas vezes, mas eu não estava preparado.
Eu aproveitava para comer bastante das pidzzas da mãe do Érico nestes ensaios.
Depois que
fui descobrir que ele não trabalhava apenas na recepção de uma Editora, e sim,
na produção editorial como Coordenador Ilustrativo. Fui chamado pelo supervisor
dele e consegui um emprego de Desenhista Ilustrador. Até fui à Igreja depois
disso! Depois de muito tempo buscando, lutando, procurando dar uma guinada na
minha vida, Deus me enviou a pessoa certa.
Fiz uma
rotina de estudos, trabalho e lazer. Queria passar no vestibular, botei isso na
cabeça e não comentei com ninguém. Meus amigos me chamavam para as festas,
ensaios, e fatalmente, eu acabava negando algumas vezes. Só não negava todos os
convites para não perder as amizades. Eles bem que achavam estranho meu
isolamento. Só contei a todos que passei no vestibular quando já estava feita a
minha matrícula. Graças ao meu salário, ajudava a pagar as contas em nosso novo
endereço, em Ipanema, pagava a faculdade de Artes Plásticas e ainda comprei uma
moto.
A parte
esquisita, é que passei a ser, de certo modo, recluso. Isto porque me acostumei
a estudar, ler, desenhar e quando não fazia isto, me sentia culpado. Além de
sentir culpa, gostava, é claro. E foi assim, durante os quatro anos do curso. Os
meus amigos da Lapa me consideravam, talvez, velho e sem graça. Eu tentava ser
diferente, eu tento. Diversas vezes, no meio de minha euforia por estar
estudando e alavancando minha profissão, vinha aquele antigo desânimo. Uma
sensação de que esse stress de dormir pouco, desenhar, ter ideias sem parar,
reservar todo o tempo do mundo para estudar... Tudo isso, nunca iria acabar.
O que existe
de mais certo no mundo é que tudo um dia tem fim. Minha faculdade chegou ao fim.
Sentia um misto de felicidade, alívio e nostalgia. Eu, que nunca me deixava
derrubar lágrimas, desta vez não consegui segurá-las. Eu estava pegando o
canudo, havia muitos flashes, meus amigos e minha mãe, que me olhava emocionada
e orgulhosa. Estavam todos lá por mim e eu estava graduado e inseguro. Pensei:
“e agora? O que eu faço? Parecia tão distante e difícil de alcançar este
universo”. Olhei para o canudo novamente, me dirigi para a banca. “Pensando bem
foi tão fácil conseguir e agora eu me pergunto: E daí? Eu tenho uma porção de
coisas grandes pra conquistar, e eu não posso ficar aí parado”.
Inspirado na música:
OURO DE TOLO
Raul Seixas
Eu devia estar
contente
Porque eu tenho um
emprego
Sou um dito cidadão
respeitável
E ganho quatro mil
cruzeiros por mês
Eu devia agradecer ao
Senhor
Por ter tido sucesso
na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui
comprar um Corcel 73
Eu devia estar alegre
e satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado
fome por dois anos
Aqui na Cidade
Maravilhosa
Ah! Eu devia estar
sorrindo e orgulhoso
Por ter finalmente
vencido na vida
Mas eu acho isso uma
grande piada
E um tanto quanto
perigosa
Eu devia estar
contente
Por ter conseguido tudo
o que eu quis
Mas confesso
abestalhado
Que eu estou
decepcionado
Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto: E daí?
Eu tenho uma porção de coisas grandes
Pra conquistar, e eu não posso ficar aí parado
Eu devia estar feliz
pelo Senhor
Ter me concedido o
domingo
Pra ir com a família
ao Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos
Ah! Mas que sujeito
chato sou eu
Que não acha nada
engraçado
Macaco praia, carro,
jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um
saco
É você olhar no
espelho
Se sentir um
grandessíssimo idiota
Saber que é humano,
ridículo, limitado
Que só usa dez por
cento de sua
Cabeça animal
E você ainda acredita
que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo
com sua parte
Para nosso belo quadro
social
Eu que não me sento
No trono de um
apartamento
Com a boca escancarada
cheia de dentes
Esperando a morte
chegar
Porque longe das
cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu
olho que vê
Assenta a sombra
sonora de um disco voador
Eu que não me sento
No trono de um
apartamento
Com a boca escancarada
cheia de dentes
Esperando a morte
chegar
Porque longe das
cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu
olho que vê
Assenta a sombra
sonora de um disco voador