domingo, 14 de abril de 2013

OURO DE TOLO


Eu tinha apenas cinco anos. Morávamos em uma casa na Lapa. Meu pai era alcoólatra. Certa vez, chegou em casa “naquele estado”, bateu em minha mãe, em mim e quebrou tudo dentro de casa. Ela também batia nele. Esta cena se tornou comum. Eu não entendia muita coisa, só sentia medo. Era estranho ver minha mãe sempre triste, os vizinhos sempre preocupados e oferecendo ajuda. Era um clima de incertezas e pânico. Cada vez que ele chegava bêbado, meu peito doía, mesmo com toda a vontade de brincar que existe dentro de uma criança desta idade, vinha uma imensa sensação de paralisia. Minha mãe não aguentou mais aquela situação, mandou-o embora e pediu ajuda aos vizinhos. Ele foi, levando todos os nossos móveis, com exceção da geladeira, fogão, um colchão, televisão, umas almofadas e o rádio. Na outra semana, porém, estava eu sentado nas almofadas vendo televisão e ele chegou. “Oi filho”, disse ele entrando. Assustado e acompanhando seus passos eu respondi apenas “Oi”. Ele pegou o rádio, explicando que era dele e precisava levá-lo. Quando minha mãe chegou do trabalho contei a ela. Sentou-se no chão e chorou calada. Perguntei por que ela estava chorando. Ela me disse que estava apenas lavando os olhos por dentro. Tivemos muitas dificuldades financeiras e passamos fome por dois anos. Para ela sair para trabalhar era necessário que eu esquentasse minha comida para almoçar, sozinho, assim como ir para o colégio, sozinho, pegando dois ônibus. Eu tinha seis anos.
 Minha adolescência foi conturbada, não queria estudar nem pensar em trabalho. Só queria namorar, andar de skate, desenhar, jogar bola e vídeo game. Quando fiz dezenove anos, percebi que era hora de mudar, via minha mãe desesperada para nos sustentar, “ainda”, fazendo tudo para que eu tivesse mais responsabilidade. Mas eu não sabia o que fazer e ficava nervoso. Quando sentia aquele aperto no peito, pensava na única coisa que meu pai me ensinou, num dia que estava sóbrio. Ele me disse: “Quando você ficar nervoso ou com medo, respire fundo até acabar o ar do pulmão e solte lentamente, que então passará”. Via as outras pessoas trabalhando normalmente, e eu, naquele dilema. Se gostava de algo, ou não, nem sabia. Quando me olhava no espelho sentia nojo daquela imagem: magricelo, barbudo, alto demais. Minhas roupas eram todas velhas, de pessoas que não as queriam mais. Precisava de um emprego pelo menos para comprar coisas que ela não podia me dar. Elaborei uma lista de coisas que gostava. Eu gostava de desenho, música e de ler. Precisava de um norte. Uma tia minha me disse que isso tudo era um hobby. Continuei desenhando e ouvindo minhas músicas. Meus desenhos eram macabros, demoníacos e monstruosos. Como alguém, além de mim, poderia gostar deles? Acho que a música sempre me inspirou. Sem ela, eu não fazia nada, nem comia. Senti muita vontade de comprar um violão e aprender a tocar. Minha família toda estava preocupada comigo, minhas primas, tios e tias, avó e... arrumei um amigo, que também se mostrava confuso com minhas escolhas, ou a falta delas. O cara se chamava Érico, e eu, desculpe não ter me apresentado antes, me chamo Léo. Leonardo Martins. Ficamos amigos um dia que ele se interessou por um papel amassado que joguei no pátio dele. Era para ter ficado furioso, se fosse eu, ficaria.
De vez em quando ele me pedia para fazer certos tipos de desenhos com foco em quadrinhos, charge, etc. Tinha o apoio dele, então, finalmente estava decidido a buscar trabalho como Desenhista. Eu não queria mais aceitar a ideia de que era apenas um hobby. Eu sabia que tinha algum talento. Através do Érico conheci outras pessoas da Lapa que quase toda a semana se encontrava nos ensaios da Banda. Convidaram-me para tocar com eles diversas vezes, mas eu não estava preparado. Eu aproveitava para comer bastante das pidzzas da mãe do Érico nestes ensaios.
Depois que fui descobrir que ele não trabalhava apenas na recepção de uma Editora, e sim, na produção editorial como Coordenador Ilustrativo. Fui chamado pelo supervisor dele e consegui um emprego de Desenhista Ilustrador. Até fui à Igreja depois disso! Depois de muito tempo buscando, lutando, procurando dar uma guinada na minha vida, Deus me enviou a pessoa certa.
Fiz uma rotina de estudos, trabalho e lazer. Queria passar no vestibular, botei isso na cabeça e não comentei com ninguém. Meus amigos me chamavam para as festas, ensaios, e fatalmente, eu acabava negando algumas vezes. Só não negava todos os convites para não perder as amizades. Eles bem que achavam estranho meu isolamento. Só contei a todos que passei no vestibular quando já estava feita a minha matrícula. Graças ao meu salário, ajudava a pagar as contas em nosso novo endereço, em Ipanema, pagava a faculdade de Artes Plásticas e ainda comprei uma moto.
A parte esquisita, é que passei a ser, de certo modo, recluso. Isto porque me acostumei a estudar, ler, desenhar e quando não fazia isto, me sentia culpado. Além de sentir culpa, gostava, é claro. E foi assim, durante os quatro anos do curso. Os meus amigos da Lapa me consideravam, talvez, velho e sem graça. Eu tentava ser diferente, eu tento. Diversas vezes, no meio de minha euforia por estar estudando e alavancando minha profissão, vinha aquele antigo desânimo. Uma sensação de que esse stress de dormir pouco, desenhar, ter ideias sem parar, reservar todo o tempo do mundo para estudar... Tudo isso, nunca iria acabar.
O que existe de mais certo no mundo é que tudo um dia tem fim. Minha faculdade chegou ao fim. Sentia um misto de felicidade, alívio e nostalgia. Eu, que nunca me deixava derrubar lágrimas, desta vez não consegui segurá-las. Eu estava pegando o canudo, havia muitos flashes, meus amigos e minha mãe, que me olhava emocionada e orgulhosa. Estavam todos lá por mim e eu estava graduado e inseguro. Pensei: “e agora? O que eu faço? Parecia tão distante e difícil de alcançar este universo”. Olhei para o canudo novamente, me dirigi para a banca. “Pensando bem foi tão fácil conseguir e agora eu me pergunto: E daí? Eu tenho uma porção de coisas grandes pra conquistar, e eu não posso ficar aí parado”.




Inspirado na música:


OURO DE TOLO
Raul Seixas

Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros por mês

Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar um Corcel 73

Eu devia estar alegre e satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado fome por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa

Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa

Eu devia estar contente
Por ter conseguido tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado

Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto: E daí?
Eu tenho uma porção de coisas grandes
Pra conquistar, e eu não posso ficar aí parado

Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Pra ir com a família ao Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos

Ah! Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco praia, carro, jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco

É você olhar no espelho
Se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
Que só usa dez por cento de sua
Cabeça animal
E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para nosso belo quadro social

Eu que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes
Esperando a morte chegar

Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador

Eu que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes
Esperando a morte chegar

Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador