Era a terceira vez que a menina conferia o horário
no relógio. Não gostava dele, mas não saber o horário provavelmente não
ajudaria a dormir. O fato é que ainda não decidira entre tirá-lo da parede ou
jogá-lo pela janela. “Qual seria a reação da pessoa que recebesse uma relojada
na cabeça lá embaixo?”, imaginou a cena, considerando que, na melhor das
hipóteses, ele faria um barulhão, pois não era “qualquer” relógio. Media por
volta de 25 cm de diâmetro, feito de madeira e em formato de Uroboro. Ela
refletia: Será que no além existe relógio? Quem morre usando relógio de pulso
continua com a imagem dele em si. Mas deve ser só a imagem. É certo que ele não
continua marcando o tempo, pois o tempo em outra dimensão é diferente. Tinha
certeza que passava um trilhão de vezes mais rápido.
Droga, só de pensar nas possibilidades de existência
de um simples relógio o ponteiro já havia andado quase meia hora a mais do seu
possível sono. “Ei, espera aí! O
relógio e o clips foram as invensões mais preciosas e úteis que já tivemos! Sem
marcar as coisas, minha memória seria pior ainda!”, disse para si. Realmente,
Lis marcava todas as suas melhores lembranças com clips coloridos. Não tinha o
hábito de marcar compromissos com clips na agenda; para isso existia a agenda
do celular. O passado é que a preocupava, pois era difícil lembrar-se dos
cheiros, do toque, das roupas, dos lugares comuns, das palavras ditas... O
problema é que se lembrava somente dos traumas. Era por isso que seus olhos não
dormiam. Seriam mais visões desagradáveis, mais sofrimento, mais saudade.
Nessas horas sempre havia alguém querendo conversar. Estranhos de quem não
podia falar. “Nem pense nisso, Lis Maria, não acreditariam em ti!”, repreende-se
a menina magrela de 12 anos, que já estava com sua cabeleira crespa parecendo
com a de uma bruxa, de tanto revirar-se na cama.
O friozinho aumentava e a dormência a invadia. Uma
mão está sobre suas costas. Lis manda a entidade embora: “Não quero falar
agora, vai embora!”, no entanto, após alguns segundos ela é chacoalhada.
Vira-se num pulo, com os olhos arregalados no escuro. Ouve o barulho da árvore
balançando do lado de fora da janela, o vulto se mescla ao movimento dos
galhos. Espreme-se no canto da parede e, neste momento, consegue enxergar
melhor. Era sua mãe. Enfim chegara o dia que prometera voltar, contemplar a
filha e contar como era do outro lado, mas a menina havia esquecido a língua
dos surdos e não entendia os gestos de sua mãe. Sua memória falhara em mais um
detalhe. Percebeu que não adiantava viver sem passado. Queria conhecer o
relógio de Deus, queria dormir tranquila. De tanto querer, o seu ponteiro parou
marcando quatro horas.
Para sua surpresa, no lugar para onde sua mãe a
levou ninguém dormia. Não havia agenda, clips, relógio, cobertor, comida,
rádio, televisão e nem celular! “Ai que tédio! Eu quero voltar!”
Bem original. Quantas vezes também fiquei pensando se o outro lado seria mesmo bom, ou um tédio geral. Mark Twain faz seu personagem Tom Sawer dizer, para horror da tia beata: Se o céu é um aglomerado de nuvens com anjos tocando harpa, quero ir para o inferno. Merecido o prêmio.
ResponderExcluirOlá, Sônia, tudo bem? Adorei seu comentário! Realmente é um grande mistério. A gente ouve histórias, mas só o que podemos fazer é imaginar. Gosto de brincar com as possibilidades! Obrigada!
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